terça-feira, 30 de agosto de 2011

O AMARGO DOS DEUSES QUE VIROU DOCE DOS FRADES

Algo que hoje é consumido mundo afora, o chocolate, também é oriundo da América. O Theobroma cacao, árvore originária da América do Sul, produz o cacau e com suas sementes  é feito o chocolate. Os primeiros a transformarem o cacau em bebida foram os Mokaya, ancestrais dos Olmecas, que há cerca de 4.000 anos  já assavam e moíam suas sementes, adicionando-lhes água. A própria palavra chocolate é de origem nahuatl, "xocolatl", que significa "água amarga". Os Maias e Astecas também consumiam essa bebida sagrada, que servia entre outras coisas para acabar com o cansaço, dar vigor sexual, criar resistência contra as intempéries, entre outras funções medicinais. Seu gosto era amargo e só a elite podia consumi-la, pois à parte de suas propriedades revigorantes, a semente do cacau também servia como moeda de troca no mundo meso-americano.

Códice De La Cruz/Badiano
Plantas usadas no tratamento de fadiga, entre elas o cacau.
(Libellus de medicinalibus, 1991, fl.38r).

Quando Colombo chegou à América conheceu as sementes de cacau, mas não deu importância. No entanto, as fontes apontam três hipóteses para sua introdução na Europa. A primeira, indica que foi o próprio Colombo que levou as primeiras sementes no regresso de sua quarta viagem. A outra hipótese aponta que Hernan Cortés depois de  provar a bebida dos deuses oferecida pelo chefe Asteca, Montezuma, a levou para a Espanha. Por último, as fontes dizem que o frade Jerónimo de Aguilar, que acompanhava Cortés, enviou as primeiras sementes para um abade pertencente à sua ordem, o próprio cacau e a receita do chocolate. E assim, o chocolate foi produzido pela primeira vez na cozinha do mosteiro cisterciense, "Monasterio de Piedra",  localizado nas proximidades de Zaragoza no começo do século XVI. Os espanhóis ficam encantados com a bebida exótica e a adaptam ao seu paladar juntando-lhe açúcar ou mel, baunilha, pimenta e outros produtos, criando sabores semelhantes aos que encontramos nos chocolates atuais. Na época, frades e freiras eram os responsáveis pela produção do chocolate, cujo consumo foi amplamente difundido, pois segundo os religiosos por ser uma bebida não quebrava o jejum. O segredo a respeito dessa iguaria foi mantido pelos espanhóis por pelo menos um século e só depois disso, o resto da Europa conheceu o chocolate. Uns dizem que foi o italiano Antonio Carletti que descobriu essa receita e a divulgou em outras regiões europeias. Também há a versão de casamentos reais responsáveis pelo início de consumo dessa bebida na França, como o de Ana da Áustria, filha de Filipe III da Espanha, que se casou com Luís XIII da França e considerou o chocolate a bebida oficial na corte francesa. Ou ainda, a união de Maria Teresa da Espanha, com Luís XIV, que corroborou esse costume. Desse modo, o consumo de chocolate se espalhou por toda a Europa e até 1828 era consumido como bebida. É quando o holandês van Houten cria uma máquina que torna possível a produção de chocolate sólido, permitindo o aparecimento das primeiras tabletes e bombons. Surge então o chocolate ao leite, com amêndoas e tantos outros ingredientes que fazem dessa antiga bebida exótica americana uma delícia mundial.

Fonte: 
LA CRUZ, Martín de. Libellus de medicinalibus indorum herbis; manuscrito azteca de 1552 según traducción latina de Juan Badiano. México: Fondo de Cultura Económica/Instituto Mexicano del Seguro Social, 1991.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A CAÇA ÀS BRUXAS ANDINAS NO SÉCULO XVII


     
Cronistas espanhóis associaram a religião indígena a um culto ao diabo, chamando-os de idólatras. Conseqüentemente, durante o século XVI começam no Peru as campanhas de extirpação de idolatrias, que tinham por objetivo terminar com toda a espécie de ídolos e rituais, considerados por eles, heréticos. As mulheres foram particularmente perseguidas e acusadas de praticarem feitiçaria, pois desempenhavam um papel importante de resistência frente à colonização espanhola, já que eram dogmatizadoras da religião indígena e revitalizadoras de antigas crenças.

Crônica que guiou os extirpadores de idolatrias

A idolatria contradizia o cristianismo, visto que repousava sobre uma adoração de criaturas, enquanto o cristianismo pregava a adoração do Criador, ou seja, Deus[1]. Para tanto, seguiu-se em terras andinas, os passos da inquisição européia, utilizando a repressão para suprimir, extirpar todo e qualquer vestígio de religião que não fosse a cristã.
Obras, como o Directorium inquisitorum[2] ou Manual dos inquisidores e o Malleus maleficarum[3], serviram para fundamentar os Concílios de Lima[4], que eram os regulamentos de combate às heresias indígenas. O Directorium descrevia as categorias de heréticos a serem reconciliados ou “relaxados ao braço secular”, quando necessário fosse. Os autores de Malleus, atribuíram às mulheres as artes maléficas, visto serem estas marcadas pelo pecado original de Eva e mais fracas diante das tentações do demônio. Essa obra tratou em detalhes a maneira demoníaca como as bruxas agiam e como era possível identificá-las, servindo de guia para os inquisidores e aconselhando-os para que não aceitassem o arrependimento como motivo para não condená-las à fogueira, visto serem elas perniciosas à cristandade.
Nos três Concílios de Lima, datados respectivamente de 1551, 1567 e 1568, foram tratados os principais objetivos da extirpação de idolatrias e a forma como deveriam ser castigados aqueles que fossem acusados de idólatras. Chamou-se a atenção, para que fossem perseguidos com mais intensidade os feiticeiros e dogmatizadores, devendo estes serem submetidos aos mais severos castigos, inclusive a pena de morte.

Feiticeiro na crônica de Guaman Poma de Ayala


No início da campanha de extirpação, houve disputas entre o clero regular, que tinha uma postura indigenista favorável a uma evangelização por persuasão e não pela violência[5], e o clero secular, favorável às extirpações. Nesse período, criou-se o cargo de juiz visitador, com o intuito não só de extirpar a religião andina, mas também de liquidar os doutrineiros regulares, submetendo-os ao seu poder e acusando-os de explorarem a população indígena e de não conhecerem as línguas vernáculas, o que dificultava a predicação.
De 1610 a 1660, a extirpação de idolatrias teve seu período de maior atividade, e apesar dos confrontos entre o clero regular e o clero secular, a partir de 1610, a Companhia de Jesus conseguiu empreender sua campanha de cristianização. Seguindo uma política missioneira relativa à zona andina, conforme foi tratada por José de Acosta[6],  e usando critérios indigenistas e coletivistas, os jesuítas conseguiram alcançar a elite indígena através do Colegio del Príncipe, em Lima, onde os filhos de curacas (chefes locais) eram educados. Para além disso,  criaram a prisão para feiticeiros, a Casa de Santa Cruz, com a finalidade de suprimir a elite de sacerdotes da religião indígena. A Companhia praticamente dominou religiosa e culturalmente o território peruano nesse período.
A Inquisição inicial queria tão somente acabar com as heresias de indivíduos já integrados à cultura hispânica, enquanto a extirpação, segundo Pierre Duviols, era a filha bastarda da inquisição, instalada em Lima em 1571 e da evangelização, pois tinha por projeto a destruição das religiões andinas[7].
Arcebispo Lobo Guerrero - responsável pelo início das campanhas de extirpação de idolatrias

Houve nesse período uma tentativa de aculturação[8] da população indígena, por parte dos visitadores, e por isso, as “bruxas” mais perseguidas eram as dogmatizadoras, visto serem as que promoviam uma contra-evangelização[9]. 
A tentativa de ocidentalização da América se deu através da evangelização e da extirpação de idolatrias, através da reprodução de lógicas mentais da velha Europa no Novo Mundo[10] e uma prova disso, é o transporte para os Andes do diabo e de sua aliada, a bruxa. Porém, o mundo andino não conhecia a noção do mal encarnado em uma figura satânica, e sim uma visão dialética em que o bem e o mal são complementos. Houve sim, uma aculturação desse termo, podendo se exemplificar com o caso dos hapiñunos, que seriam fantasmas ou duendes, que foram posteriormente transformados em forças diabólicas derrotadas por Santo Tomás, conforme os relatos de Pachacuti Yamqui [11]. Desta forma, os inquisidores conseguiam que os acusados acabassem por confessar a ligação com o diabo, pois essa noção européia acabou por mesclar-se com as estruturas simbólicas indígenas. Quanto à fragilidade moral feminina, que segundo a concepção européia, explicava a existência de um grande número de bruxas, também não está de acordo com a visão indígena, que ao contrário, conferia à mulher importante papel na manutenção e reprodução da existência social.


Ídolos dos Incas

Na sociedade andina havia conhecedores de ervas, soldadores de ossos e os curandeiros, mas como na Europa, dizia-se que esse tipo de conhecimento só era concedido aos seguidores do diabo, a idolatria, o curandeirismo e a bruxaria acabaram sendo confundidos, sendo esta última, uma invenção hispânica[12].
Por meio de tortura, os visitadores conseguiam as evidências que necessitavam para condenar o acusado, assim um grande número de curandeiros confessaram ter recebido seu conhecimentos de ervas através de pactos demoníacos.
Os deuses andinos estavam perdendo a força diante das adversidades coloniais, estavam se calando e conforme Todorov, é necessário ter o domíno dos signos para que se possa manter o poder[13]. O papel das bruxas-dogmatizadoras[14] nas comunidades, era de suma importância para a manutenção da sabedoria e rituais indígenas, pois simbolizava a resistência ao sistema colonial, fazendo com que a desestruturação do mundo andino sob a dominação espanhola, nas palavras de Wachtel,  ao contrário de ter significado uma decomposição ou o nascimento de um mundo novo, fosse a sobrevivência de estruturas antigas, apenas fora do contexto coerente em que se situavam[15].
A perseguição às bruxas, por parte dos visitadores foi tal, que podemos comprovar através da Relación de la visita de extirpación de idolatrías de Cristóbal de Albornoz[16], o número consideravelmente maior de mulheres que foram acusadas de feitiçaria, tendo sido a maioria condenada a serviços perpétuos para Igreja, podendo levar-nos também à suposição de que essa seria uma forma de escravizar mão-de-obra indígena, fato este que não desenvolveremos neste trabalho, por falta de comprovação documental suficiente.
Na obra de José de Arriaga, aparece um exemplo de deturpação de rituais indígenas extremamente significativo, que é quando este descreve a ação de feiticeiros que constituíam sociedades secretas e que atuavam quando os outros dormiam, entrando nas casas e sugando um pouco do sangue da pessoa a quem queriam matar e depois levavam esse sangue ao grupo, que o cozinhava e comia. Alguns dias depois, a pessoa de quem retiraram o sangue, morria. Adoravam o demônio, que aparecia em forma de leão ou tigre, mantinham relações homo e heterosexuais durante as festas e depois todos beijavam-lhe o traseiro[17]. Essa, nada mais é, que uma descrição da comunhão diabólica do sabá[18], ou seja, através de comportamentos ritualísticos andinos, Arriaga sugere o sabá, o que leva a crer que os bruxos andinos tenham sido bastante atormentados pelos extirpadores para que estes conseguissem esses relatos.

Sacrifício de Llama

A explanação acima, reitera a afirmação de Irene Silverblatt, sobre ser a bruxaria andina uma invenção espanhola. O processo de aculturação incutido pelos  religiosos permitiu que as estruturas indígenas fossem adaptadas às suas necessidades, mostrando mais uma vez ter sido fundamental o papel das “bruxas” andinas na manutenção das crenças indígenas.
Na maioria dos casos, a extirpação de idolatrias usou métodos de tortura, como açoites, a tosa de cabelo ou ter de andar nu encima de uma llama. O acusado poderia ter seus bens confiscados, ser condenado a trabalho provisório ou definitivo para a Igreja, como já mencionamos, ou até mesmo, à pena de morte. Na Espanha, ser condenado a andar nu era considerado humilhante, mas entre os índios não teve a mesma conotação, visto serem esses solidários contra a Igreja conquistadora. Já a tosquia de cabelo, significava uma perda imensurável, pois estes tinham valor de distinção entre os diversos ayllus (sistemas de parentesco) e os extirpadores tinham consciência disso. O confisco de bens entre uma população que vivia comunitariamente, era um fato trágico, pois significava o empobrecimento de toda a comunidade.
Durante os autos-de-fé, eram queimados ídolos e, por vezes, os “mallqui” (múmias de antepassados). Os índios não aceitavam que os corpos fossem enterrados, devido a suas convicções religiosas de haver vida após a morte, por isso, sempre que podiam, resgatavam os corpos de familiares enterrados no cemitério da Igreja. Os extirpadores, revoltados, mandavam queimar os cadáveres, porque na concepção cristã, estavam condenando-os ao inferno. Ao fazerem isso, estavam na verdade acabando com as raízes deste culto, ou seja, matando aquela cultura através de seus mortos[19].

Superstições

Como na Europa, a luta contra a heresia nos Andes teve fins políticos, pois a população que queria escapar aos rigores da Extirpação, como os que acabamos de expor, era forçada a entrar nas reduções, onde era evangelizada e controlada politicamente, facilitando a cobrança de tributo. No caso das mulheres, especificamente, a perseguição foi maior, não só por serem as “bruxas” as companheiras do diabo, conforme a mentalidade européia da época, mas por que estas eram temidas pelos espanhóis e seus aliados indígenas, por representarem a resistência ao mundo colonial, visto que tinham grande poder dentro de suas comunidades, participando de reuniões importantes do povoado e sendo inclusive temidas pelos curacas (chefes locais). Eram as detentoras da sabedoria e rituais indígenas e utilizavam esses conhecimentos para destruir o desequilíbrio provocado em seu mundo pelo domínio espanhol.



[1] DUVIOLS, Pierre. Cultura andina y represion; procesos y hechícerias. Cajatambo, siglo XVII. Cusco: centro de estudios rurales andinos “bartolomé de las casas” , 1986.p.XXVII.
[2] EYMERICH, Nicolau, PEÑA, Francisco. Le manuel des inquisiteurs. Trad. Louis Sala-Molins, Paris-La Haye: Mouton, 1973.
[3] SPRENGER, Jacob,  KRAMER, Heinrich. Malleus Maleficarum. Madrid: Colección Abraxas de Ediciones Felmar, s/d.
[4]DUVIOLS, op. cit.
[5] LAS CASAS, Bartolomé de. Del único modo de atraer todos los pueblos a la verdadera religión. (1537). México: FCE, 1975.
[6] ACOSTA, José de . De procuranda indorun salute o predicación del evangelio en las Indias. (1577) In: Obras del padre José de Acosta, pp. 387-608. madrid: Atlas (BAE, t.73), 1954.
[7] DUVIOLS, op. cit., p.LXXIII.
[8] WACHTEL, Nathan. A aculturação. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. (Dir.) História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p.113-129.
[9] DUVIOLS, P. op. cit., p. LXXVI.
[10] GRUZINSKI, sege. Las repercusiones de la conquista: la experiencia novohispana. In: BERNAND, Carmen (Org.). Descubrimiento, conquista y colonización de América a quinientos años. México, FCE, 1994.
[11] PACHACUTI YAMQUI SALCAMAYGUA, Joan de Santa Cruz. Relacion de antiguedades deste reyno del Piru; Estudio etnohistórico y lingüístico de Pierre Duviols y César Itier. Cusco:IFEA/CBC, 1993. p.188.
[12] SILVERBLATT, Irene. Luna, sol y brujas; género y clases en los Andes prehispánicos y coloniales. Cusco: centro de estudios regionales andinos “bartolomé de las casas”, 1990. p.129.
[13] TODOROV, T. A conquista da América; a questão do outro. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
[14] NOBOA, Bernardo de. “Causa de ydolatrias hecha a pedimiento del fiscal eclesiastico contra los yndios e yndias hechiseros dogmatizadores confesores sacristanes ministros de ydolos del pueblo de San Juan de Machaca”. In: DUVIOLS, Pierre. Cultura andina y represion; procesos y visitas de idolatrías y hechicerías. Cajatambo, siglo XVII. Cusco:  Centro de Estudios Rurales Andinos “Bartolomé de las Casas”, 1986.
[15] WACHTEL, Nathan. Los vencidos; los indios del Perú frente a la conquista española (1530-1570). Madrid: Alianza Editorial, 1976. p.135.
[16] In: MILLONES, Luís et al. El retorno de las huacas; estudios y documentos del siglo XVI. Lima: IEP/SPP, 1990.  p.259, 278 etc.
[17] ARRIAGA, P. José de. Extirpación de la idolatría del Pirú. In: BARBA, Francisco Esteve. Cronicas peruanas de interes indigena. Madrid: Atlas (BAE, t.109), 1968. p. 208.
[18]Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugares solitários, no campo ou na montanha. Às vezes, chegavam voando, depois de ter untado o corpo com ungüentos, montando bastões ou cabos de vassoura; em outras ocasiões, apareciam em garupas de animais ou então transformados eles próprios em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam renunciar à fé cristã, profanar os sacramentos e render homenagem ao diabo, presente sob a forma humana ou (mais freqüentemente) como animal ou semi-animal. Seguiam-se banquetes, danças, orgias sexuais. Antes de voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam ungüentos maléficos, produzidos com gurdura de criança e outros ingredientes” In: GINZBURG, Carlo. História noturna; decifrando o sabá.  São Paulo: Companhia da Letras, 1991. p. 9.
[19] DUVIOLS,  op. cit., p. LXXV.

OBS: Artigo publicado nos Anais do Encontro Regional da ANPUH-RJ de 1998. http://www.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=307
Os desenhos do cronista Guaman Poma de Ayala encontram-se na Biblioteca Real da Dinamarca.
Fotos de acervo próprio.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

TSANTSA...O RITUAL DE ENCOLHER CABEÇAS DOS JIVAROS

Os cronistas espanhóis foram os primeiros a relatar essa prática inerente aos Jivaros (jíbaros em espanhol) ou Shuar, povo originário do altiplano equatoriano, mas que também habitam na amazônia peruana e na Colômbia ocidental. Desde sempre, esse grupo praticou a guerra contra seus vizinhos pra conquistar novos territórios e saquear aldeias. Nesses entraves, algo os atraía muito...colecionar as cabeças dos inimigos. Muitos povos decapitaram seus opositores, mas os jivaros foram mais longe...criaram uma técnica de reduzir as cabeças e transformá-las em troféus, que eram devidamente penduradas no pescoço como  símbolo de poder. Eles acreditavam que o espírito do inimigo estava na cabeça e o ritual de redução era exatamente para impedir uma futura vingança. Para tanto, eles cortavam a pele da nuca ao pescoço e retiravam o crânio (toda a parte óssea), o cérebro, olhos e todas as partes moles. Colocavam a pele a ferver numa panela com algumas ervas que faziam a cabeça ir reduzindo aos poucos e não deixavam que o cabelo se soltasse. Depois de reduzida,  a retiravam da água e costuravam o corte na nuca, a boca e os olhos.  Pedras quentes ou areia  eram colocadas no interior da cabeça até conseguirem o tamanho ideal e o formato mais aproximado do rosto do inimigo. Ao final, defumavam a cabeça para que ela ficasse escura e tudo isso tinha um importante significado...eles estavam condenando o inimigo à escuridão e impedindo que ele pudesse voltar para fazer mal a seu assassino. Atualmente esse ritual está proibido, mas as cabeças existentes nos museus são reais. Mas cuidado, pois em 2008 seis corpos decapitados foram encontrados no Equador, na região onde habitam esses povos e a polícia acredita que foi para atender o mercado internacional de cabeças reduzidas, afinal há quem as queira para estudar ou simplesmente colecionar. Nesse caso, é crime e dos mais hediondos.


Cabeças reduzidas - Museu Nacional de Arqueologia, Antropologia e História do Peru

OBS: Foto de acervo próprio.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

RESISTÊNCIA E ADAPTAÇÃO INCAICA NAS CRÔNICAS DAS ÍNDIAS


Os diversos documentos que tratam do processo de descobrimento, exploração, conquista e colonização do Novo Mundo são conhecidos pela denominação de Crônicas das Índias e existem três tipos de texto: cartas relatórios, relações geográficas e crônicas[1].

Novo Mundo, 1596 - Theodore de Bry


As crônicas possuem uma dimensão literária e também ideológica e são reflexo do pensamento renascentista, mesclado a traços medievais em que os cronistas tentam assimilar mentalmente a realidade do Novo Mundo[2]. As expedições marítimas, que foram em sua grande maioria, financiadas pelo setor privado, foram responsáveis também pela produção de milhares de documentos. Grande parte das crônicas foi gerada como uma obrigação, visto que o capitão da expedição tinha que descrever para o rei suas atividades e como eram as novas terras descobertas.
Havia outros motivos para a preparação desse tipo de documentação. Poderiam ser gerados documentos pela vontade própria de entender e dar a conhecer esse Novo Mundo, bem como, com o intuito de mudar a situação pessoal, se defendendo de algum processo judicial ou mostrando seus feitos na esperança de conseguir méritos da coroa[3].
Dentre esses documentos, havia aqueles de ordem etnográfica, que foram produzidos por cronistas que dominavam uma ou várias línguas indígenas, como por exemplo, Toríbio Motolínia[4], Bernardino de Sahagún[5], Diego de Landa[6], Cristóbal de Molina, el cuzqueño[7], Juan de Betanzos[8] e outros. Estes foram os fundadores da etnografia e entenderam a dupla tragédia, militar e cultural vivida pelos indígenas e os ajudaram com seus escritos a preservar a memória autóctone.

Imagem de Theodore de Bry para a obra de Las Casas

Quando mencionamos a invenção da América, esta representou a necessidade de forjar uma nova realidade social e cultural nesse Novo Mundo, mundo, não continente nem terra. A América aparecia como o lugar onde tudo podia ser modificado em oposição ao velho mundo. Isso originou idéias como as propagadas na obra Utopia de Thomas More[9], que é um exemplo do pensamento humanista. A Utopia era o local onde imperava o espírito de justiça social, a tolerância religiosa, a educação racional e não violenta, o cultivo das virtudes cidadãs e instituições democráticas e o repúdio à violência e às guerras.
Apesar da influência do humanismo nessa época, poucos eram os cronistas das Índias que sabiam latim, algo essencial a um verdadeiro humanista. Suas preocupações eram de ordem material e de sobrevivência e raros foram os que mostraram em seus escritos ecos utópicos.
Algo sempre presente nas crônicas e que reflete a tentativa de compreensão do outro, é o processo de alteridade. Todorov, pesquisador búlgaro, procura mostrar em sua obra que os espanhóis descobriram, conquistaram e depois procuraram conhecer para poder dominar. Cortez foi um dos que mais buscou informações sobre o povo que ele almejava subjugar política e economicamente. Já Las Casas tratou de compreender os povos indígenas para poder assimilá-los culturalmente[10].
Os cronistas possuíam diversos fins, mas todos descreveram e propagaram dados sobre o Novo Mundo, numa tentativa de integração intelectual desse mundo à mentalidade ocidental. Poucos realmente são os que chegam a entender o mundo indígena, pois para tal, era necessário conhecer a língua desses povos.
A maioria dos cronistas eram homens de poucas letras, havendo inclusive, grandes conquistadores que eram analfabetos, como é o caso de Francisco Pizarro e Diego de Almagro. No entanto, os cronistas liam muito ou pelo menos aquilo a que tinham acesso na América e tentavam fazer o melhor que podiam em suas obras. Apesar de terem motivos variados para realizar suas obras, todos tinham consciência que a historiografia requeria retórica[11], ou seja, que os livros de história deveriam ser redigidos em linguagem culta, elegante e respeitar a verdade dos fatos.
As Crônicas das Índias são um testemunho vivo do encontro/desencontro da cultura européia, neste caso, a espanhola, com as culturas indígenas que habitavam o Novo Mundo. Quando nos referimos ao encontro desses mundos diferentes e que mudaram o curso de suas histórias devido a essa aproximação cultural, não podemos deixar de mencionar os resultados desse cruzamento cultural ocorrido no início do século XVI. No caso andino, por exemplo, percebemos que além da queda e desestruturação do Império dos Incas, a conquista espanhola significou o despojo de seus meios de produção e a impossibilidade de voltar a organizá-los ao seu modo. Significou também a desarticulação das estruturas e o sincretismo, visto que esses povos eram muito religiosos e viam no aparato eclesiástico europeu grande similitude com o deles próprios.


Imagens da conquista dos Incas pelos espanhóis na crônica de Guaman Poma de Ayala

Os espanhóis ao descreverem o mundo andino, tinham uma visão etnocêntrica, pois tinham valores e juízos pré-estabelecidos, dessa forma era difícil captar o caráter social das instituições andinas. O povo andino, por sua vez, passa a integrar-se ao mecanismo da aculturação, entendido aqui como um processo de adaptações e resistência.
Segundo os historiadores Clarke Simon e Nicholas Cooper que estudaram áreas conquistadas pelos romanos, o processo vivido pelos grupos autóctones foi de continuidade do que havia sido desenvolvido no período pré-romano e quando da chegada dos romanos houve a adoção e adaptação de seus traços culturais dentro da cultura nativa[12]. O mesmo aconteceu em relação aos grupos étnicos andinos, que viveram um processo de interação recíproca com os europeus.
Quando examinamos contatos entre culturas diferentes, percebemos que o mais usual é que ocorra uma fusão cultural em que é freqüente o predomínio de uma cultura sobre a outra, depois de um processo sempre complicado em que a recepção de elementos culturais implica seleção de uns, o repúdio a outros e ainda a modificação dos demais. O resultado é uma mescla sempre complexa e às vezes difícil de interpretar. Ocorrem também fenômenos de resistência, que podem ser de cunho seletivo em relação a determinados elementos culturais ou de resistência total[13]. O que podemos perceber é que se faz necessário entender de que modo os grupos étnicos andinos modificaram seus valores e tradições frente aos ocidentais. Através da análise das crônicas podemos interpretar as transformações ocorridas durante o período colonial desde a conquista do Tahuantinsuyu (nome do Império Inca em quechua).
Esses textos são resultantes do processo de alteridade vivido entre culturas distintas e por isso, representam as práticas culturais do século XVI em que grupos étnicos andinos foram forçados a alterar seu modo de vida diante do novo, o que não significa que se submeteram aos espanhóis. Quando mencionamos que os cronistas indígenas possuíam um discurso aculturado, temos em mente a representação discursiva de seu mundo de acordo com suas necessidades de sobrevivência[14]. Prova disso, são as crônicas de Titu Cusi, Guaman Poma de Ayala e Garcilaso de la Vega que  alertam para os danos causados pelos conquistadores espanhóis manipulando o discurso de modo a alcançar seus interesses, que podiam ser pessoais ou coletivos. A colaboração com os europeus, por vezes, significou uma forma de resistência sem o uso da violência.
Conforme Serge Gruzinski demonstrou, as mudanças culturais ocorridas nesse período propiciaram possibilidades de reorganização dos grupos indígenas diante do vazio provocado pelo sistema colonial[15].
Percebemos então, que no caso andino, não houve a passagem da cultura indígena à cultura ocidental, e sim, o processo inverso, em que a cultura indígena integrou os elementos europeus. Como os incas estavam acostumados a produzir excedente econômico e a pagar tributo, os espanhóis aproveitaram o sistema preexistente para controlar a mão-de-obra. Para isso, contavam com a ajuda de chefes locais, que mantinham como antes, a ligação entre senhores e súditos. Foi essa administração indireta que favoreceu a manutenção das tradições indígenas, apesar da ação espanhola em sentido contrário através da evangelização e das reduções[16], que em verdade desde o momento inicial da conquista, eram um instrumento para justificar suas pretensões políticas[17]. Os documentos indígenas são resultantes dessa mescla, em que por um lado há a influência dessa ‘aculturação’, pois os cronistas retratam sua cultura com visão ocidentalizada, mas por outro, fazem uma apologia ao mundo andino[18].
Tais relatos originam-se da confluência de discursos representativos de culturas distintas. A utensilagem mental[19] do espanhol, só lhe permitia reproduzir aquilo que via de acordo com seus próprios traços culturais. O indígena que passou pelo processo de aculturação, não apagou de sua memória a própria cultura, apenas passou a filtrá-la sob influência dos modelos europeus. Ao analisarmos documentos do século XVI e XVII, que tratam a história andina no período incaico e colonial até à época de Toledo, estamos lidando com um conjunto de informações que são a representação desse mundo indígena, aos olhos de europeus e de mestiços e autóctones influenciados por traços culturais espanhóis. Os textos resultantes dessa confluência cultural representam uma nova realidade, que acabará por ser assimilada e sociabilizada.
Podemos concluir, que as crônicas espanholas e indígenas resultam dessas práticas culturais vividas no século XVI, que expressam distintos processos adaptativos e até de resistência. A tão aclamada vitória espanhola sobre os Incas, reflete a tragédia vivida por esse povo, que teve seu mundo transformado. As crônicas fornecem-nos representações da história do descobrimento e conquista do Peru, bem como, todo o período de colonização. Estas refletem discursos distintos de grupos que se encontraram numa fronteira intercultural[20], que permite sua transposição, mas em que estes dificilmente perdem suas próprias características. O processo de alteridade, bem como, as representações do mundo indígena se originam nessas fronteiras discursivas, onde o discurso espanhol e autóctone se encontram ou divergem, mostrando as imagens desses dois mundos em contato.


[1] MIGNOLO, Walter. Cartas, crónicas y relaciones del descubirmiento y la conquista. In: MADRIGAL, L. Íñigo (Coord.). Historia de la literatura hispanoamericana. Madrid: Cátedra, 1982, pp.57-116.
[2] Ver ELLIOTT, J. H. . El viejo mundo y el nuevo. Madrid: Alianza Editorial, 1984.
[3] Como exemplo, podemos citar Diego de Landa, que sofreu um processo judicial na Espanha, em virtude das arbitrariedades praticadas contra os índios e espanhóis em Yucatán. Para tal, redige a Relación de las cosas de Yucatán. México: Porrúa, 1966.
[4] MOTOLINIA, Toribio. Historia de los indios de Nueva España. Barcelona: Juan Gili, 1914.
[5] SAHAGÚN, Berbardino de. Historia general de las cosas de Nueva España. México: Porrúa, 1985.
[6] LANDA, Op. cit., 1966.
[7] CRISTÓBAL DE MOLINA, El cuzqueño. Fábulas y ritos de los Incas. Buenos Aires: Editorial Futuro, 1959[1552].
[8] BETANZOS, Juan de. Suma y narración de los Incas. In: Crónicas peruanas de interés indigena. Madrid: BAE, 1968[1551].
[9] MORE, Thomas. Utopia. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d.
[10] TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
[11] VALCÁRCEL MARTÍNEZ, Simón. Las crónicas de Indias como expresión y configuración de la mentalidad renacentista. Granada: Diputación Provincial de Granada, 1997. p.429.
[12] SIMON, Clarke. Acculturation and continuity: re-assessing the significance of Romanization in the hinterlands of Gloucester and Cirencester. In: WEBSTER, Jane, COOPER, Nick. Roman Imperialism: post-colonial perspectives. University of Leicester: Leicester, 1996, p.83; COOPER, Nicholas F. Searching for the blank generation: consumer choice in Roman and post-Roman Britain. Idem, 1996, p.86.
[13] CÉSPEDES DEL CASTILLO, Guillermo.  Las fronteras de Europa en la Edad Moderna. In: CÉSPEDES DEL CASTILLO, Guillermo. Ensayos sobre los reinos castellanos de Indias. Madrid: RAH, 1999, pp.10 e 11.
[14] STERN, Steven, Resistance, rebellion and consciounes in the Andean Peasant Word, 18th to 20th Centuries. Tha University of Wisconsin Press,.1987.
[15] GRUZINSKI, Serge. La red agujerada – identidades étnicas y occidentalizacion en el Mexico colonial (siglos XVI-XIX). America Indigena, Mexico, ano XLVI, n.3, jul-set, Vol. XLVI, 1986, pp.415.
[16]  WACHTEL, Nathan. A aculturação, in LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976b, pp.114-115.
[17] PIETSCHMANN, Horst. La Conquista de América: un bosquejo histórico, in KOHUT, Karl (ed.), De conquistadores y conquistados; realidad, justificación, representación. Frankfurt, Vervuert, 1992, pag.16.
[18] Sobre encontros e desencontros culturais ver também: BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp.255-267.
[19]  FEBVRE, Lucien. Le problème de l’incroyance au 16e siècle; la religion de Rabelais. Paris, Albin Michel, 1988, pag.328.
[20] “La interculturalidad no apunta pues a la incorporación del otro en lo proprio, sea ya en sentido religioso, moral o estético. Busca más bien la transfiguración de lo proprio y de lo ajeno com base en la interacción  y en vistas a la creación de un  espacio común  compartido determinado por la con-vivencia.
La meta de la con-vivencia no debe confundirse en ningún caso com la “pacificación” de las (conflictivas) controversias entre las diferencias, mediante la reunión de las mismas en una totalidad superior que se las apropria y armoniza”  FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la Filosofía. Bilbao: Desclée, 2001, p.47.