sábado, 14 de janeiro de 2012

ENFOQUE CRÍTICO DA ARQUEOLOGIA


Serra do Cipó - MG - Brasil

Apresentar um esboço crítico da arqueologia[1] pede antes de tudo um entendimento do significado de tal vocábulo. Essa palavra de origem grega refere-se ao conhecimento dos princípios ou relato das coisas antigas e é utilizada para designar uma ciência em construção que estuda sistemas sociais, sua estrutura, o funcionamento e transformações com o correr do tempo, a partir da porção da totalidade material socialmente apropriada, como artefatos, biofatos e ecofatos[2].
Nas últimas décadas, ocorreram grandes mudanças em que se assistiu a um período de questionamento global dos fundamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos da historiografia e da arqueologia, disciplina que passaremos a analisar.

Algumas interpretações na arqueologia

Bruce G. Trigger escreveu uma das melhores obras sobre a história da arqueologia até os nossos dias, mostrando como foram ocorrendo as mudanças metodológicas na interpretação arqueológica, usando para tanto, exemplos e nomes dos principais pesquisadores seguidores das várias correntes teóricas utilizadas pela arqueologia[3].
A literatura arqueológica, segundo Colin Renfrew e Paul Bahn, é composta por diversas discussões entre os seguidores da linha positivista, marxista, estruturalista e outras[4].
No início do século XX, os arqueólogos usavam uma linha teórica positivista tradicional, que prevaleceu por muitas décadas. A preocupação da época era mostrar pontos de origem por um processo de “difusão cultural”, assim como ter um “horizonte cronológico” e uma série de definições de estilos de cerâmica no espaço e tempo[5].
Por volta da década de 30, Gordon Childe iniciou a crítica a essa arqueologia tradicional, usando para isso, uma análise marxista, que só passou a ser examinada por volta de 1960 e 1970. Para ele, a arqueologia trata-se de uma forma de história e não uma simples disciplina auxiliar. Os dados arqueológicos são documentos históricos por direito próprio e não meras abonações de textos escritos e são constituídos por todas as alterações no mundo material resultantes da ação humana, ou melhor, são os restos materiais da conduta humana. O seu conjunto constitui os chamados testemunhos arqueológicos. Estes apresentam particularidades e limitações cujas conseqüências se revelam no contraste bem visível entre a história arqueológica e a outra forma usual de história, baseada em documentos escritos[6].
Na década de 50, aparecem as grandes descobertas e as cidades perdidas e os arqueólogos tinham que ser mais aventureiros, do que bons acadêmicos. Mas, é também nesse período que surge a escavação estratigráfica, que implica que os estratos do sítio sejam retirados, segundo sua colocação e configuração original, no sentido inverso ao que foram depositados[7]. Assim, ocorre a destruição dos monumentos arqueológicos em nome da estratigrafia.
Entre os anos 50 e 60 houve a reconstrução arbitrária de uma série de monumentos, em nome da conservação e restauração. Porém, é na década de 60 que aparece a New Archaeology[8], que é uma linha teórica que se desenvolveu na América e que segundo Luis Lumbreras, trata-se de uma corrente que surgiu como resultado da obsoleta arqueologia positivista, visto que esta se colocou à margem do desenvolvimento técnico da ciência. O empirismo arqueológico, por um lado, e o subjetivismo das generalizações obrigaram os arqueólogos a estabelecer a necessidade de uma formulação metodológica de base indutivo-dedutiva[9].
Essa nova corrente apresenta uma série de falhas, pois como coloca Ian Hodder, a New Archaeology se esqueceu do indivíduo, considerando-o alheio à teoria social. As vasilhas individuais se estudavam como meros reflexos passivos do sistema sócio-cultural. Estudava-se cada vasilha, cada artefato para ver seu funcionamento em relação ao sistema como um todo[10].
Apesar desta corrente teórica ter a intenção de romper com a interpretação positivista tradicional na arqueologia, ela não o conseguiu, porque segundo Funari, esta corrente apresentava e formulava princípios relativos a processos culturais, visando a compreensão do comportamento humano em geral e acabou se tornando uma proposta antropológica que se opunha à mera tentativa de reconstrução histórica[11].
Dessa forma, a New Archaeology foi criticada e chamada de funcionalista[12] e também de ecologista[13] e em 1970 aparece como reação a arqueologia estruturalista, que proporciona um método e uma teoria para a análise do significado da cultura material.
Dentro desse processo histórico de desenvolvimento da arqueologia aparecem uma série de novos métodos para interpretar os objetos de estudo na área arqueológica como, por exemplo, baseados na corrente marxista. Para Ian Hodder, na arqueologia marxista são as condições materiais ou as contradições estruturais que determinam o indivíduo e as ideologias dominantes as que o mitificam[14].
Luis Lumbreras, defensor da arqueologia como ciência social, assim como o foi Gordon Childe, se apoia no marxismo, porém com uma abordagem estruturalista, pois para ele a arqueologia se preocupa em estudar sistematicamente as sociedades cujos restos materiais nos permitem reconstruir determinados aspectos de sua vida[15].
Atualmente a arqueologia não trata somente de assinalar e dispor de uma posição teórica, mas sim de conseguir seus referentes ontológicos e epistemológicos de maneira explícita no processo de investigação científica. É importante perceber as mudanças ocorridas desde o início do século até aos nossos dias e principalmente, entender a importância do desmantelamento da arqueologia tradicional, frente às novas teorias existentes.

San Pedro do Atacama - Chile


Considerações finais

Neste breve histórico sobre as mudanças ocorridas nas análises arqueológicas podemos destacar três linhas teóricas de grande importância: a positivista tradicional, a neopositivista, conhecida por New Archaeology e a arqueologia como ciência social.
A corrente positivista tradicional, própria do final da década de 50, tinha no objeto seu tema de estudo. Dessa forma, os arqueólogos desse período efetuavam classificações de cerâmica, podendo ser, por vezes, confundidos com historiadores da arte.
O neopositivismo constituiu uma escola que se autodenominou New Archaeology e desde a década de 60 tem grande importância nos círculos acadêmicos norte-americanos.
A New Archaeology tem seu aparato conceitual baseado na categoria “cultura”, elaborada pelos antropólogos ou etnólogos, como noção central e totalizadora da atividade social. Sendo a “cultura” o objeto de estudo e assumindo que era constituída pelo conjunto de pautas possibilitadoras da atividade dos indivíduos  na vida social, o estudo da cultura consistia  na busca de tais pautas e a determinação da rede causal de sua configuração.
A arqueologia como ciência social, que tem suas premissas no marxismo, passou da pesquisa dos objetos ao estudo das pessoas. O questionamento de uma ontologia idealista, que submete a realidade a uma categoria totalizadora como o conceito cultura, implicava a necessidade de desenvolver uma coerente inserção de uma ontologia materialista no aparato conceitual da arqueologia. A arqueologia como ciência social responde às incógnitas postuladas pelos arqueólogos, visto que o objetivo da interpretação arqueológica é entender quem fez o objeto, porquê e para quê, ou seja, buscar compreender o sujeito em seu meio social, baseando-se nos restos materiais.
Os arqueólogos estavam incapacitados de se aproximarem de maneira crítica a qualquer proposta explicativa da História, da Antropologia ou da Sociologia. Porém, a influência de Gordon Childe, que se baseava no marxismo para dar um tratamento contrário frente às seqüências de artefatos dos arqueólogos tradicionais, os fez tentar romper com o empirismo e assumir o compromisso com a ciência, buscando a explicação sistemática dos fenômenos sociais no campo da dialética materialista.

Vestígios Wari - Ayacucho - Peru


Bibliografia

CHILDE, V. Gordon. Introdução à arqueologia. 2.ed. Lisboa: Europa-América, 1977.
DICIONÁRIO de Ciências Sociais. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987.
FRÉDÉRIC, Louis. Manual prático de arqueologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1980.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988.
HODDER, Ian. Interpretación en arqueología; corrientes actuales. Barcelona: Editorial Crítica, 1988.
LUMBRERAS, Luis G. La arqueologia como ciencia social. Lima: Peisa, 1981.
RENFREW, Colin, BAHN, Paul. Archaeology; theories, methods and practice. New York: Thames and Hudson, 1991.
SCHNAPP, Alain. A arqueologia. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. História: novas abordagens. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. New York: Cambridge University Press, 1989.




[1] “Etimologicamente, é a ciência da antiguidade (archaios: antigo, logos: ciência), no sentido em que o entendiam os historiadores gregos e Josefo nas suas Antiguidades Judaicas”. Frédéric, Louis. Manual prático de arqueologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1980, p.19.
[2] Funari, Pedro P. A. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988, p.78.
[3] Trigger, Bruce G. A history of archaeological thought. New York: Cambridge University Press, 1989.
[4] Renfrew, Colin, Bahn, Paul. Archaeology: theories, methods and practice. New York: Thames and Hudson, 1991, p. 405.
[5] Idem, 1991, p.407.
[6] Childe, v. Gordon. Introdução à arqueologia. 2.ed. Lisboa: Europa-América, 1977, p.9.
[7] Funari, op. cit., 1988, p.80.
[8]  “Ela procura desmontar os paralogismos dos procedimentos tradicionais, procura tornar explícito o que estava implícito” Schnapp, Alain. A arqueologia. In: Le Goff, Jacques, Nora, Pierre. História: novas abordagens. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.16.
[9] Lumbreras, Luis G. La arqueologia como ciencia social. Lima: Peisa, 1981, p.7.
[10] Hodder, Ian. Interpretación en arqueología; corrientes actuales. Barcelona: Editorial Crítica, 1988, p.19-20.
[11] Funari, op. cit., 1988, p.14.
[12] “...exprime uma atitude diante dos fatos sociais baseada no princípio filosófico segundo o qual tudo o que existe numa dada sociedade tem um sentido, um significado...” in: Dicionário de Ciências Sociais. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987, p.503.
[13] “a ecologia  sócio-cultural parte do princípio de que o estudo da adaptação de uma comunidade ou área cultural a seu meio deve levar muito em conta seu nível de complexidade. A maior simplicidade cultural corresponde maior condicionamento ao meio. Este, por sua vez, afeta a distribuição da população, além de dispor em certa forma as terras, flora e fauna” in: Idem, 1987, p.380.
[14] Hodder, op. cit., 1988, p.91.
[15] Lumbreras, op. cit., 1981, p.15.


OBS: Fotos de acervo próprio.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

AYLLU E CURACAS NA SOCIEDADE ANDINA COLONIAL




Quando usamos a palavra ayllu nos dias atuais, logo se pensa num povoado ou mais propriamente num território demarcado. No século XVI, o ayllu representava a forma de organização de uma população que vivia dispersa e cuja identidade se dava pelos laços de parentesco. Sendo assim, podemos perceber que de acordo com as crônicas, o mundo andino deve ser analisado em dois momentos importantes, antes e durante as instalações das reduções toladanas ocorridas entre as décadas de 1560 e 1570. Num primeiro momento, o ayllu era o símbolo da união de uma família extensa, já durante as reduções, os nativos foram reagrupados em assentamentos para servirem de mão-de-obra de fácil acesso e controle. Não foram poucos os casos em que diferentes ayllus terminaram unidos em uma única redução, o que gerou sérios problemas. Sendo assim, podemos perceber que o entendimento do mundo andino por parte dos espanhóis nem sempre correspondeu à simbologia indígena.

Uma das primeiras descrições que temos sobre o ayllu está na Visita de 1540 à etnia de Jayanca concentrada na costa norte do Peru, que publicou Waldemar Espinoza Soriano[1]. O visitador Sebastián de la Gama viu centenas de fazendas, assentamentos, povoados e casas dentro de um raio de duas léguas em relação à residência do curaca. Muitos destes centros habitacionais e pequenos povoados, cerca de 250, foram abandonados ou destruídos. O visitador enumerou a população e concluiu que havia mais ou menos 4.000 tributários. Mas, conversando com o curaca, percebeu que também havia centenas de tributários seus na serra, que haviam ido para lá em tempos do pai  do curaca, com a finalidade de prover o grupo com alimentos distintos dos da costa. Isso era normal na história dos Andes, um mesmo ayllu podia estar disperso por diferentes locais[2].

O que unia essa gente dispersa por diferentes campos era a crença de que todos eram filhos do mesmo ancestral a quem cultuavam. Estes estavam todos sujeitos ao curaca e adoravam seus antepassados, encontrando-se em festas durante o ano. Essas cerimônias eram compostas por sacrifícios de comidas, purificação pessoal, cantos e danças e as pessoas consumiam grande quantidade de chicha e carne de animais sacrificados. Tais rituais de reciprocidade e redistribuição reforçavam as alianças entre essa gente, criando uma identidade.

Encabeçando essas atividades estava o curaca, que além de organizar a mão-de-obra para servir ao Inca (e depois aos espanhóis), tinha a responsabilidade de manter o culto aos seus antepassados que lhes haviam dado origem. Um curaca era eleito por ser considerado o mais apto, hábil e capaz entre todos os outros candidatos. Pertencia à linhagem dos fundadores do ayllu, o que lhe dava o direito de ser o “dono de Índios”[3].

Como representante do culto ancestral, o curaca visitava sua gente pedindo sua ajuda para organizar a mão-de-obra com a finalidade de manter os edifícios e espaços dedicados ao culto, cultivar a terra e cuidar dos animais que seriam sacrificados. Por tudo isso, o curaca era considerado algo mais que uma simples autoridade secular  e política. Sua identificação com o sagrado era tão grande, que um curacazgo era composto pelo curaca e as pessoas que participavam do culto aos seus antepassados.

As pessoas se identificavam com seu curaca e  sua história, não importava o local de sua residência. Por isso, era comum encontrar entre os sujeitos de um curaca pessoas que estavam ligadas a outro curaca e a isso se denomina “territorialidade salpicada” ou “descontínua”[4].

Nos Andes não havia propriedade privada, todos tinham direito a cultivar quanta terra pudessem e o tempo que quisessem. As pessoas só tinham direito exclusivo aos bens que plantavam com a sua semente e sua mão-de-obra. As casas também pertenciam a quem as construía, mas não o terreno onde estavam localizadas. Por causa da falta de propriedade privada, podemos dizer que a população andina antes de 1532 vivia em assentamentos cuja ocupação era descontínua, sendo possível encontrar pessoas de ayllus diferentes compartilhando o mesmo espaço.

O poder do curaca era flexível, pois não existia um território com fronteiras estáveis e fixas. Os limites de sua soberania se estendiam até onde se encontravam pessoas de sua linhagem e que aderiam ao seu culto. Por sua vez, estes mudavam de residência de acordo com as necessidades do pastoreio e plantio. Assim, em vez de termos fronteiras fixas como nas definições territoriais que conhecemos, temos “fronteiras sociais” que podiam mudar de ano para ano em função das atividades econômicas[5]. O ayllu não tinha uma definição geográfica, pois as relações entre seus componentes eram apenas de consangüinidade e rituais.



O que se pode entender por ayllu no século XVI é um conjunto de pessoas, que não necessariamente viviam concentradas em um lugar, mas que estavam ligadas por laços de parentesco e de culto a um antepassado comum.
Esta concepção fluída de ayllu mudou depois da chegada dos espanhóis. Por um lado, o processo de evangelização, por outro, as doenças introduzidas pelos europeus, que causaram uma baixa demográfica entre os nativos e, também, a necessidade de facilitar a arrecadação de impostos e organizar a mão-de-obra. Esses foram alguns dos fatores que em conjunto levaram à implantação da política das reduções[6]. Estas começaram informalmente em 1540, por causa da mortalidade entre os nativos. Os sobreviventes iam se aglomerando com outros grupos, quando suas linhagens se extinguiam[7]. A partir da década de 1570, o vice-rei Francisco de Toledo implementa as reduções com o objetivo de aumentar o poder colonial, concentrando integrantes de vários ayllus que viviam dispersos, em novos assentamentos passíveis de exploração por parte dos espanhóis. As reduções diminuíram o poder do curaca e acabaram com o culto aos seus antepassados. A conversão ao catolicismo significa o fim da identidade enquanto filhos comuns de um único ancestral. Ao deixarem de identificar-se enquanto sujeitos a um curaca e filhos de determinadas huacas, os povos andinos passaram a identificar-se com um lugar. Esse lugar era a redução, que foi criada para facilitar o controle de um Estado central europeu.

Ao analisarmos as crônicas, percebemos esse processo, que começa com a representação do ayllu como sendo um clã ou um povoado e depois durante o período toledano, o que interessa são os assentamentos de acordo com o modelo europeu. Por isso, ao lermos as crônicas, estamos enfatizando os discursos que, convergentes ou divergentes ou simplesmente entrelaçados nas fronteiras discursivas, vão construindo imagens do mundo andino, que podem por sua vez ser explicadas historicamente. Essas imagens não são só fruto dos esforços feitos por europeus, nativos e mestiços para representar esse mundo através dos textos, são também expressões do pensamento que surge de uma nascente modernidade ou de uma cultura e sociedade (a espanhola) que vive a transição do mundo medieval para o moderno e tem por tarefa compreender a realidade americana e construir uma ordem política e social nestas terras.

O problema encontrado ao analisarmos as crônicas tardias é que nem sempre aparece o termo ayllu e isso, talvez se deva ao desconhecimento do quechua por parte dos espanhóis ou ao fato, de num primeiro momento, eles estarem mais interessados em registrar a quantidade de povoados,  curacas e seus dependentes. No documento de 1540, sobre a visita à região de Cajamarca, o encarregado da visita deve perguntar por parcialidades e curacas[8], o que nos leva a crer que o termo parcialidade foi inicialmente sinônimo de ayllu. Em documentos da época, é usual referirem-se a provincias e repartimientos e também pueblos com seus curacas, denotando-se uma preocupação com o número de pessoas e de recursos disponíveis[9], o que atenderia ao sistema de encomiendas vigente nesse período.

Durante a visita geral de Francisco de Toledo há uma preocupação em perguntar especificamente pelos ayllus[10], porém ainda não temos claro o momento em que essa categoria passa a ser representada na documentação espanhola e sua coexistência ou diferenciação em relação ao que era a parcialidade.

Na serra norte, por sua vez, o termo ayllu não era utilizado pelas etnias locais, e sim, o termo pachaca, o que nos mostra que havia diferenças regionais.  O que pudemos perceber até o momento é que os cronistas tardios referem-se a ayllu, parcialidad e pachaca como sendo sinônimos, mas no período toledano os termos parcialidad ou suyu são equivalentes às divisões sócio-políticas de vários ayllus agrupados em bandos. Os ayllus são representados como grupos unidos por parentesco com origem comum e mítica. Esse vocábulo parece pertencer à realidade das etnias que habitavam no vale de Cuzco e foram os espanhóis que o propagaram, ora significando linhagem, ora povoado.



Em síntese, antes da chegada dos espanhóis, o ayllu tratava-se de um grupo ligado por laços de parentesco, além de outras características já tratadas, que sob o domínio incaico foi inserido num contexto maior, tendo por função atender ao sistema produtivo do Estado inca. No período colonial, o ayllu aparece nos relatos de cronistas não só como linhagem, mas também como povoado, transformando assim sua antiga conotação. Depois das reduções toledanas também muda a sua organização e o ayllu passa a representar não só uma unidade de parentesco, mas também uma unidade política territorial em que o objetivo foi proporcionar mão-de-obra disponível para as tarefas coloniais.

Os cronistas espanhóis, ao tratarem o assunto, não estavam apenas influenciados pela realidade colonial peruana, mas também por critérios trazidos da Espanha, como a concepção que tinham de suas próprias comunidades camponesas. Isso, ao nosso ver, deve ter sido determinante nas análises que fizeram do ayllu. Através de uma revisão crítica do que pensavam os cronistas desse período a respeito do ayllu, podemos confrontar informações para perceber o que se confirma e o que se contradiz nesses documentos. A partir daí, percebemos as representações que levaram à identificação de ayllu com comunidade e redução na passagem do período pré-hispânico para o colonial.

Verificamos também como o processo de 'aculturação' sofrida por cronistas indígenas influenciou em seus escritos.  É importante frisar, que entendemos por processo de ‘aculturação’, um movimento de adaptações, assimilações, reelaborações e inclusive recusas e ações contra-aculturativas. Em termos gerais se entende por aculturação o conjunto de fenômenos que resultam do contato direto e contínuo de grupos que participam de culturas diferentes[11].

Nathan Wachtel, grande estudioso da história do Peru, abordou em várias obras o conceito de aculturação, deixando transparecer uma tendência a colocar em oposição tradição e aculturação, o que leva a uma simplificação do processo de absorção dos novos elementos culturais, considerados superficiais e desestruturadores[12].

Já Steven Stern ao tratar as mudanças ocorridas com os índios que ficaram frente aos ocidentais, prefere denominar esse processo de resistência adaptativa, em que os índios procuraram as melhores condições de sobrevivência[13]. Para contrastar, temos ainda o posicionamento de Serge Gruzinski, que considera as mudanças culturais propícias à reorganização e resistência indígena, pois a colaboração e adaptação à nova realidade eram fundamentais como métodos de sobrevivência cultural[14]. Entendemos então que as crônicas redigidas por indígenas, mesmo sendo fruto de uma visão aculturada, não significa que representem o mundo andino de forma distorcida ou preconceituosa, muito pelo contrário, algumas se constituíram em verdadeiros discursos apologéticos e de resistência cultural.

Os incas estavam acostumados a produzir excedente econômico e a pagar tributo e os espanhóis aproveitaram o sistema preexistente para controlar a mão-de-obra. Para isso, contavam com a ajuda de chefes locais, que mantinham, como antes, a ligação entre senhores e súditos. Foi essa administração indireta que favoreceu a manutenção das tradições indígenas, apesar da ação espanhola em sentido contrário através da evangelização e das reduções[15]. As crônicas indígenas são o resultado dessa mescla, em que por um lado é visível a influência dessa ‘aculturação’, pois os cronistas retratam sua realidade com visão ocidentalizada, mas por outro fazem uma apologia ao mundo andino.

As crônicas de maior interesse para essa pesquisa foram produzidas desde 1532 até princípios do século XVII, por ser o período em que os cronistas escreveram sobre o ayllu pré-hispânico e colonial. Sendo que o período inicial de colonização é o de maior interesse, pois é quando o ayllu sofre uma transformação conceitual consolidada no período das reduções toledanas, ou seja, de primordialmente baseado em sistema de parentesco, o ayllu passa a ter por base um espaço territorial definido.

Nesse estudo mostramos que o ayllu pré-hispânico foi geralmente composto por uma família extensa  detentora ou não de um território utilizado comunitariamente para subsistência de seus integrantes e, que no período colonial, adquiriu um caráter primordialmente territorial com a finalidade de armazenar mão-de-obra. Sendo a concepção de comunidade uma organização medieval européia, esta se confunde com as reduções do vice-rei Toledo, originando a ideia de ser o ayllu uma comunidade, o que antes das reduções não existe. O ayllu é um grupo ligado por sistema de parentesco que possui ou não um território e que mantém relações de reciprocidade produtiva, enquanto a comunidade é uma organização colonial eminentemente territorial que tem por objetivo armazenar mão-de-obra. A dimensão política incaica é aproveitada no período colonial. Chefes locais, descontentes com o domínio inca, servem aos espanhóis que mantêm a mesma divisão territorial e a mesma estrutura hierárquica, conforme foi estabelecido pelo Inca. O intuito não é mais atender aos sistemas de reciprocidade e redistribuição, e sim, organizar a mão-de-obra disponível.




[1] ESPINOZA SORIANO, Waldemar. El Valle de Jayanca y el reino de los Mochica: Siglos XV-XVI. Buletín de l’Institut Français d’Etudes Andines. IV:3-4, 1975, pp.243-274.
[2] AGI, Justicia 458, 1801v.
[3] RAMÍREZ, Susan E. The world upside down: cross-cultural contact and conflict in sixteenth-century Peru. Stanford: Stanford University Press, 1996.
[4] ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO, María. Patronyms with the consonant F. In: The Guarangas of Cajamarca. MASUDA, Shozo et al (Eds). Andean Ecology and Civilization. Tokyo: University of Tokyo Press, 1985, pp.401-421.
[5] RAMIREZ, Susan E.  Social frontiers and the territorial base of curacazgos. In: MASUDA, Shozo et al. Idem, 1985, pp. 423-442.
[6] ESCOBEDO MANSILLA, Ronald. Las comunidades indígenas y la economía colonial peruana. Bilbao: Servicio Editorial de la Universidad del Pais Basco, 1997, pp. 50, 54-60.
[7] ORTIZ DE ZUÑIGA, Iñigo. La visita de la provincia de León de Huanaco en 1562. Huanaco: Universidad Nacional Hermilio Valdizar, 1972. 2 vols.
[8] ESPINOZA SORIANO, Waldemar. El primer informe etnológico sobre Cajamarca, Año de 1540. Revista Peruana de Cultura, 11-12, Lima, 1967, pp. 23.
[9]  ORTIZ DE ZUÑIGA, Iñigo. Op cit., 1972. 2 vols.
[10] TOLEDO, Francisco de. Libro general de la visita del virrey don Francisco de Toledo. ROMERO, Carlos. Revista Historica. VII, Lima, 1924 [1570-75]
[11] SILVA-SANTISTEBAN, Fernando. El significado de la conquista y el proceso de aculturación hispano-andino. In: SOLANO, Francisco et al. Proceso historico al conquistador. Madrid: Alianza, 1988, pp.147-150.
[12] Ver WACHTEL, Nathan. Los vencidos. Los indios del Perú frente a la conquista española (1530-1570). Madrid: Alianza, 1976; Idem. A aculturação. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios aldeados no Rio de Janeiro colonial – Novos súditos cristãos do Império Português. Tese de Doutorado da Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, 2000, p.45.
[13] STERN, Steve. Resistance, rebellion and consciounes in the Andean Peasant Word, 18th to 20th Centuries. Tha University of Wisconsin Press, 1987.
[14] GRUZINSKI, Serge. La red agujerada – identidades étnicas y occidentalizacion en el Mexico colonial (siglos XVI-XIX). America Indigena, Mexico, n.3, jul-set, Vol. XLVI.
[15] WACHTEL, Nathan. 1976b, pp. 114-115.




Caso queira saber mais sobre o ayllu andino, consulte o livro:
PORTUGAL, Ana Raquel. O ayllu andino nas crônicas quinhentistas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

OBS: Fotos de acervo próprio.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

MI LATINOAMERICA EM 8 IDIOMAS


Nova ferramenta foi inserida no nosso blog para permitir que mais pessoas tenham acesso ao seu conteúdo. Basta um clique e o google tradutor auxiliará na aproximação dos povos. Compartilhem!!!

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

REPRESENTAÇÕES CULTURAIS DA AMÉRICA INDÍGENA




SIMPÓSIO

REPRESENTAÇÕES CULTURAIS DA AMÉRICA INDÍGENA

Coordenações:
Profa. Dra. Liliana Regalado de Hurtado - PUCP - Lima/Peru
Profa. Dra. Ana Raquel Portugal - UNESP - BRASIL
E-mail: lregala@pucp.edu.pe / miauq@hotmail.com



Os povos indígenas têm sido representados ao longo dos séculos através de imagens e escritos que auxiliam na construção de sua memória histórica. No período anterior à chegada dos europeus, pinturas em paredes de templos, esculturas e outros meios foram utilizados para conservar narrativas mitológicas, descrições de costumes e do cotidiano das populações autóctones. No período da conquista, os europeus passaram também a descrever os povos americanos, depreciando-os ou buscando compreender suas características culturais. As representações simbólicas da América indígena nos permitem uma aproximação às várias histórias desses povos, que foram contadas de distintas formas de acordo com a época e os interesses vigentes. Estudos que recorram a documentos pictóricos, iconográficos, cronísticos, bem como, à historiografia sobre temas relacionados à América indígena são o foco deste simpósio.

25 de janeiro de 2012 a 20 de junho de 2012 - Inscrições de comunicações nos simpósios (diretamente com os coordenadores).



III Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas 

Tema Central

América Latina: Processos civilizatórios e crises do capitalismo contemporâneo

Período: 27 a 31 de agosto de 2012

Local : Campus da UERJ - Maracanã